Arte da palavra

Esta página apresenta trechos de alguns livros indicados e de narrativas da tradição oral dos povos indígenas.  
Mergulhe nas palavras criadoras, elas têm o poder da transformação....

Poema do povo Yanomami 
Fonte: Mitopoemas Yãnomam  
Olivetti do Brasil Edição, adaptação literária: Mário Chamie Concepção e projeto gráfico Emilie Chamie Tradução Português: Carlos Zacquini Narradores e desenhistas: Koromani Waiaca, Mamoke Rorowê, Kreptip Wakatautheri Fotos: Cláudia Andujar 1978

Começo do mundo 1

Céu rachou enorme
Céu rachou todo
Tudo acabou
Longe do céu pés
Céu escorado
O céu sobreposto
Céu suspenso
Longe céu, longe suspenso
Céu perna enfincada
Céu perna enfincou de pau
Outro céu rachadura céu encaixado
Céu racha ainda
Depois céu rachou
É nublado
Tudo acabou completamente
Mato não tem mais
Mato fundo longe
Longe muito foi
Mato folha pequena
Rachada no meio a árvore de nariz (tronco) curto
As árvores eram Yanomami
Água ainda alto



Começo do mundo 2
Maloca pequena, longe alto
Tudo acabou
Longe, longe choram
Tudo acaba
Cipó, maloca pequena longe, alto
Aquela perto, longe outra maloca fixaram
Aqui minha maloca em cima
Antigamente tudo acabou longe
De cima desce tudo
Tapiri choram todos, hiima, aflitos bateram
Batiam muito
Panela batia
Menino chora todo mesmo
Céu escoram xamãs
Xamãs céu sustentam, céu sustentaram  escorando
Céu devagar alto suspendem
Suspendem baixo muito
mato céu outro, céu racha
Outro fica
Céu escora pajé grande, escora muito.





Fim do mundo

Tudo acaba
Céu desaparecerá
Com os napepe todos caem
Tudo acaba
Cai tudo, de cima, desce
Tudo acaba, longe irá para o fundo
Cai, tudo acabará
Aqui, outro céu suspenso fica
Céu pequeno, fino, suspenso, este céu descerá
Céu longe, fundo
Choram muito
Napepe todos caem
Tudo acaba
Depois, Ynaomami não
Céu cai enorme muito
Céu completo desde, todo desaparece
Yanomami não dormem mais
Céu os pés
Lá céu fincado
Lá céu fincado longe
Lá céu fincado é (indicando as quatro pontos cardeais)
Céu completo cai todo
choram todos
depois céu acabará
céu estruturas, céu estruturas suspendem
céu cai
tudo acaba.
Céu acabará, todo mesmo, longe.








Narrativa Yanomami

Os dois depoimentos abaixo de Davi Kopenawa Yanomami foram recolhidos em 1998 na aldeia onde vive, traduzidos e editados por Bruce Albert (antropólogo, Institut de Recherche pour le Développement - IRD -, Paris). O segundo foi anteriormente publicado em: Novaes, Adauto (org.) - A Outra Margem do Ocidente,  São Paulo: Minc - Funarte/Companhia Das Letras, 1999.

Davi Kopenawa Yanomami é quem conta.

A Saga de Davi Kopenawa Yanomami, por Bruce Albert
Davi Kopenawa, nascido em 1956, vive na aldeia yanomami de Watoriki, situada ao pé da serra do Demini ("serra do Vento"), no estado do Amazonas. Seu grupo de origem foi quase inteiramente aniquilado no alto rio Toototobi (perto da fronteira venezuelana) por duas epidemias sucessivas após contatos estabelecidos com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e com a missão evangélica Novas Tribos do Brasil (NTB) (1959-60, gripe [?]; 1967; sarampo) Criança, Davi Kopenawa perdeu, assim, a maior parte dos membros de sua família.

Em seguida sofreu, e depois rejeitou, o proselitismo dos missionários da NTB, abandonando na adolescência sua região natal para trabalhar na Fundação Nacional do Índio (Funai) como intérprete. No começo dos anos 80, fixou-se em Watoriki, ali se casando com a filha do líder da comunidade, xamã renomado que o iniciou e, tradicionalista convicto, permanece seu mentor.

Ele é hoje a um só tempo chefe do posto indígena Demini e um dos mais influentes xamãs de Watoriki. A invasão de suas terras por cerca de 30 a 40 mil garimpeiros custou a vida, entre 1987 e 1990, de mais de mil Yanomami no Brasil. Chocado com essa tragédia que reavivou nele a lembrança das que dizimaram sua família nos anos 60, Davi Kopenawa engajou-se em uma luta incansável contra a destruição de seu povo e da floresta de sua terra. Graças a sua experiência com os brancos e à firmeza intelectual que lhe confere o saber xamanístico, tornou-se rapidamente o principal porta-voz da causa yanomami, no Brasil e no mundo. Visitou, ao longo dos anos 80 e 90, vários países da Europa e os Estados Unidos. Recebeu, depois de Chico Mendes, o prêmio Global 500 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e, recentemente, a Ordem de Rio Branco ao grau de cavaleiro.

Sonhos das origens

Os espíritos xapiripë dançam para os xamãs desde o primeiro tempo e assim continuam até hoje. Eles parecem seres humanos mas são tão minúsculos quanto partículas de poeira cintilantes. Para poder vê-los deve-se inalar o pó da árvore yãkõanahi muitas e muitas vezes. Leva tanto tempo quanto para os brancos aprender o desenho de suas palavras.

O pó do yãkõanahi é a comida dos espíritos. Quem não o "bebe" assim fica com olhos de fantasma e não vê nada.

Os xapiripë dançam juntos sobre grandes espelhos que descem do céu. Nunca são cinzentos como os humanos. São sempre magníficos: o corpo pintado de urucum e percorrido de desenhos pretos, suas cabeças cobertas de plumas brancas de urubu rei, suas braçadeiras de miçangas repletas de plumas de papagaios, de cujubim e de arara vermelha, a cintura envolta de rabos de tucanos.

Milhares deles chegam para dançar juntos, agitando folhas de palmeiras novas, soltando gritos de alegria e cantando sem parar. Seus caminhos parecem fios de aranhas brilhando como a luz do luar e seus ornamentos de plumas mexem lentamente ao ritmo de seus passos. Da alegria de ver quanto são bonitos!

Os espíritos são tão numerosos porque eles são as imagens dos animais da floresta. Todos na floresta têm uma imagem utupë: quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tem asas, quem mora na água. São estas imagens que os xamãs chamam e fazem descer para virar espíritos xapiripë. Esta imagens são o verdadeiro centro, o verdeiro interior dos seres da floresta. As pessoas comuns não pode vê-los, só os xamãs. Mas não são imagens dos animais que conhecemos agora. São imagens dos pais destes animais, são imagens dos nossos antepassados.

No primeiro tempo, quando a floresta estava ainda jovem, nossos antepassados eram humanos com nomes de animais e acabaram virando caça. São eles que flechamos e comemos hoje. Mas suas imagens não desapareceram e são elas que agora dançam para nós como espíritos xapiripë. Estes antepassados são verdadeiros antigos. Viraram caça há muito tempo mas seus fantasmas permanecem aqui. Têm nomes de animais mas são seres invisíveis que nunca morrem. A epidemia dos brancos pode tentar queimá-los e devorá-los, nunca desaparecerão. Seus espelhos brotam sempre de novo.

Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Nos guardamos as palavras dos nosso antepassados dentro de nós há muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos, escutam os cantos do xamãs e depois querem ver os espíritos por sua vez. É assim que, apesar de muito antigas, as palavras dos xapiripë sempre voltam a ser novas. São elas que aumentam nossos pensamentos. São elas que nos fazem ver e conhecer as coisas de longe, as coisas dos antigos. É o nosso estudo, o que nos ensina a sonhar. Deste modo, quem não bebe o sopro dos espíritos tem o pensamento curto e enfumaçado; quem não é olhado pelos xapiripë não sonha, só dorme como um machado no chão.



Descobrindo os brancos
Dos espíritos canibais

Há muito tempo, meus avós, que habitavam Mõramabi araopi, uma casa situada muito longe, nas nascentes do rio Toototobi, iam às vezes visitar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio Aracá.

Foi lá que encontraram os primeiros brancos. Esses estrangeiros coletavam fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio.(1) Durante essas visitas nossos mais velhos obtiveram seus primeiros facões. Eles me contaram isso muitas vezes quando eu era criança. Naquele tempo, eles só encontravam brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não iam vê-los sem motivo, simplesmente para visitá-los. Haviam visto suas ferramentas metálicas e as cobiçavam, pois possuíam apenas pedaços de metal que Omama deixara.(2) Era durante essas longas viagens que, de vez em quando, eles conseguiam obter um facão ou mesmo um machado. Trabalhavam então em suas plantações emprestando-os uns aos outros. Quando um tinha aberto sua plantação, passava-os a um outro e assim por diante. Eles emprestavam também essas poucas ferramentas metálicas de uma aldeia a outra.

Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos tão longe, não: tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo. Evidentemente, eles achavam as panelas de alumínio muito bonitas, mas tampouco era por isso que faziam aquelas viagens: também tinham vasilhas de terracota para cozinhar sua caça. Era realmente por seus facões e seus machados que iam visitar aqueles estrangeiros.

Mas foi bem mais tarde, quando habitávamos Marakana, mais para o lado da foz do rio Toototobi, que os brancos visitaram nossa casa pela primeira vez. Na época, nossos mais velhos estavam ainda todos vivos e éramos muito numerosos, eu me lembro. Eu era um menino, mas começava a tomar consciência das coisas. Foi lá que comecei a crescer e descobri os brancos. Eu nunca os vira, não sabia nada deles. Nem mesmo pensava que eles existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adultos já os haviam encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos. Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam. Além disso, não compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas. Parecia que eles tinham uma língua de fantasmas. Eram pessoas da "Comissão".(3) Os mais velhos diziam que eles roubavam as crianças, que já as haviam capturado e levado com eles quando tinham subido o rio Mapulaú, no passado.(4) Era por isso também que eu tinha muito medo: estava certo de que também iam me levar. Meus avós já haviam contado muitas vezes essa história, eu os ouvira dizer: “Sim, esses brancos são ladrões de crianças!”, e tinha muito medo. Por que eles levaram aquelas crianças? Eu me pergunto isso ainda hoje.

Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação, minha mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no fundo de nossa casa. Ela me dizia então: "Não tenha medo! Não diga uma palavra!", e eu ficava assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu me lembro, no entanto devia ser realmente muito pequeno, senão não teria cabido debaixo daquele cesto! Minha mãe me escondia pois também temia que os brancos me levassem com eles, como tinham roubado aquelas crianças, da primeira vez. Era também para me acalmar, pois eu estava aterrorizado e só parava de chorar quando estava escondido. Todos os bens dos brancos me assustavam também: tinha medo de seus motores, de suas lâmpadas elétricas, de seus sapatos, de seus óculos e de seus relógios. Tinha medo da fumaça de seus cigarros, do cheiro de sua gasolina. Tudo me assustava, porque nunca vira nada de semelhante e ainda era pequeno! Mas, quando seus aviões nos sobrevoavam, eu não era o único a ficar assustado, os adultos também tinham medo; alguns chegavam mesmo a romper em soluços, e todo mundo fugia para a mata vizinha! Nós somos habitantes da floresta, não conhecíamos os aviões e estávamos aterrorizados. Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam cair sobre nós e queimar todos. Todos tínhamos muito medo de morrer! Eu me lembro que também tinha medo das vozes que saíam dos rádios e da explosão dos fuzis que matavam a caça. Perguntava-me o que todas aquelas coisas que pareciam sobrenaturais poderiam ser! Perguntava-me também por que aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa.

Mais tarde, realmente comecei a crescer e a pensar direito, mas continuei a me perguntar: "O que os brancos vêm fazer aqui? Por que abrem caminhos em nossa floresta?". Os mais velhos me respondiam: "Eles vêm sem dúvida visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde!". Mas eles não compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que os deixaram penetrar em suas terras dessa maneira amistosa. Se tivessem compreendido suas palavras, acho que os teriam expulsado. Aqueles brancos os enganaram com seus presentes. Deram-lhes machados, facões, facas, tecidos. Disseram-lhes, para adormecer sua desconfiança: "Nós, os brancos, nunca os deixaremos desprovidos, lhes daremos muito de nossas mercadorias e vocês se tomarão nossos amigos!". Mas, pouco depois, nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia, depois em uma outra. Mais tarde, muitos outros Yanomami novamente morreram quando a estrada entrou na floresta (5)e bem mais ainda quando os garimpeiros chegaram ali com sua malária. Mas, dessa vez, eu tinha me tomado adulto e pensava direito; sabia realmente o que os brancos queriam ao penetrar em nossa terra.

Descobrir o Descobrimento

Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas não têm nenhuma sabedoria. Não pensam mais no que eram seus ancestrais quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram como nós, mas esqueceram todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessaram as águas e vieram em nossa direção. Depois, repetem que descobriram esta terra. Só compreendi isso quando comecei a compreender sua língua. Mas nós, os habitantes da floresta, habitamos aqui há longuíssimo tempo, desde que Omama nos criou. No começo das coisas, aqui só havia habitantes da floresta, seres humanos.(6) Os brancos clamam hoje: "Nós descobrimos a terra do Brasil!". Isso não passa de uma mentira. Ela existe desde sempre e Omama nos criou com ela. Nossos ancestrais a conheciam desde sempre. Ela não foi descoberta pelos brancos! Muitos outros povos, como os Makuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante, os Kayapó e os Guarani ali viviam também. Mas, apesar disso, os brancos continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra! Como se ela estivesse vazia! Como se os seres humanos não a habitassem desde os primeiros tempos!

Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos para nós!(7) Ele lhes deu uma terra, muito longe daqui, pois queria nos proteger de suas epidemias e de suas armas. Foi por isso que os afastou. Mas esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram por muito tempo. Eles se lembraram: "É verdade! Havia lá, ao longe, uma outra terra muito bela!", e voltaram para nós. Na margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios. Esses brancos eram pouco numerosos e começaram a mentir: "Nós, os brancos, somos bons e generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos viver a seu lado nesta terra com vocês! Seremos seus amigos!". Era com essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que também chegaram a nós. Depois dessas primeiras palavras de mentira eles foram embora e falaram entre si. Depois voltaram muito numerosos. No começo, sem casa nesta terra, ainda mostravam amizade pelos índios. Tinham visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui. Mas desde que se instalaram realmente, desde que construíram suas habitações e abriram suas plantações, desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para procurar ouro, esqueceram sua amizade. Começaram a matar as gentes da floresta que viviam perto deles.

Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nesta terra. É o que dizem nossos mais velhos. Não havia doenças perigosas, sarampo, gripes, malária. Estávamos sozinhos, não havia garimpeiros para queimar o ouro, fábricas para produzir ferro e gasolina, carros e aviões. A floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes. Foi apenas quando os brancos se tomaram muito numerosos que sua fumaça-epidemia xawara começou a aumentar e a se propagar por toda parte. Essa coisa má se tomou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta começaram a morrer.(8) Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais não tinham fábricas, caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer crescer seu alimento. Também não sujavam todos os rios como esses brancos que agora procuram ouro em nossas terras.

"Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos importantes!", dizem os brancos. Mas são apenas palavras de mentira. Eles não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a devastá-Ias. Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe desde os primeiros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio nessas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso que repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros a propósito de nossa floresta: "Os Yanomami não habitavam aqui, eles vêm de outro lugar! Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!". Mas eu, sou filho dos antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve ali, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram sobre ela, portanto a possuo!". Ela existe desde sempre, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri o céu!". Também não clamo: "Eu descobri os peixes, eu descobri a caça!". Eles sempre estiveram lá, desde os primeiros tempos. Digo simplesmente que também os como, isso é tudo.

O Povo das Mercadorias

Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa. Era sua floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores para construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de aumentar, e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, não havia mais caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar mercadorias e seu espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses bens sobre os quais fixaram seu pensamento. Eles construíram casas de pedra, para que não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta, dizendo-se: "Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas delas e dinheiro também! Assim, quando formos realmente muito numerosos, jamais seremos miseráveis!". Foi com esse pensamento que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios. Agora, só bebem água "embrulhada", que precisam comprar. A água de verdade, a que corre nos rios, já não é boa para beber.

Nos primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e seus ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas perigosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor é perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas ferramentas, máquinas, carros e aviões. Eles se tomaram eufóricos e se disseram: "Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!". Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar. Nunca mais eles se disseram: "Se destruirmos a terra, será que seremos capazes de recriar uma outra?".

Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas cidades são belas, mas seu barulho não pára nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito se toma obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: "Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são mentirosos!". O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os "brancos-espíritos-tatus-gigantes" [mineradoras] entram por toda parte sob a terra para retirar os minérios, eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais.(9)

Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapïripë, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, não queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos.

Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas. As terras dos brancos estão contaminadas, estão cobertas de uma fumaça-epidemia-xawara que se estendeu muito alto no peito do céu. Essa fumaça se dirige para nós mas ainda não chega lá, pois o espírito celeste Hutukarari a repele ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o céu ainda é claro, pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós. Mas bem mais tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fumaça aumente a ponto de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol. Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias, como se fossem suas suas namoradas.



Notas
(1) Rio Aracá, que como o rio Toototobi, é um afluente do rio Demini, ele próprio tributário da margem esquerda do rio Negro.
(2) Os antigos Yanomami possuíam fragmentos de facões e de machados muito gastos, que obtinham por um complexo circuito de trocas interétnicas, mas cuja origem atribuíam a Omama, seu herói cultural.
(3) Uma equipe da Comissão dos Limites (CBDL) subiu o rio Toototobi em 1958-9.
(4) Alusão a uma primeira visita da CBDL ao rio Toototobi, em 1941.
(5) A BR-210 (Perimetral Norte), aberta em 1973-4 e abandonada em 1976, depois de cortar duzentos quilômetros a sudeste do território yanomami.
(6) A autodesignação dos Yanomami - yanomae thëpë - significa antes de tudo "seres humanos", e se aplica também aos outros índios, opondo-se aos animais, aos seres sobrenaturais e aos não-índios (napëpë).
(7) Os brancos foram criados por Omama a partir do sangue de um grupo de ancestrais Yanomami devorados por lontras e jacarés numa grande enchente provocada pela quebra de um resguardo menstrual.
(8) A expressão xawara wakëxi ("epidemia-fumaça") designa aqui a um só tempo as epidemias e a poluição, às quais é atribuída a mesma origem: a fusão do ouro, dos metais e dos carburantes extraídos da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer seus veículos.
(9) O universo yanomami compõe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um "grande vazio". O mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora dos tempos. É habitado pelos ancestrais Yanomami da primeira humanidade, que se tornaram monstros canibais (os aõpataripë).



Poemas do povo Guarani
Fonte: Palabras Luminosas
Pierre Clastres 

Ñamandu, pai verdadeiro. O primeiro.
Sobre a terra Ñamandu grande coração, divino espelho de todas as coisas, se ergue
Tu que fazes com que se levantem aqueles a quem há dado o arco
Ei-nos aqui: de novo nos erguemos.
As coisas são assim enquanto as palavras indestrutíveis
Ninguém, jamais, as debilitará,
Nós, os pouco numerosos órfãos das coisas divinas
Nós voltaremos dizer-las, erguendo-nos
Pois podemos nos erguer e nos erguer novamente.
Ñamandu pai verdadeiro, o primeiro.



A aparição de Ñamandu

Nosso o último, nosso pai, o primeiro
Faz com que seu próprio corpo surja, na noite originária.

A divina planta dos pés,
A pequena raiz redonda:
No coração da noite originária ele faz com que se revelasse
revelando-se a si mesma.

Divino espelho do saber das coisas,
União divina de toda coisa,
Divinas as palmas das mãos,
Palmas divinas com ramos floridos:
Ele as revela ao revelar-se a si mesma.
Ñamandu, no coração da noite originária.

No alto da cabeça divina, as flores
As plumas que a coroam são gotas de orvalho.
Entre as flores, entre as plumas da coroa divina
O pássaro originário, Maino, o colibri, voa, revoltei.
Nosso pai primeiro
Revela seu corpo divino em seu próprio revelar-se.
No coração do vento originário,
Na futura morada terrestre
Ele não a conhece ainda por si mesmo,
A futura casa celeste, a terra futura
A aqueles que foram desde a origem,
Ele não os conhece ainda por si mesmo
Maino faz então que sua boca seja fresca
Maino alimento divino de Ñamandu.

Nosso primeiro pai Ñamandu
Não fez ainda que se revele
Em seu próprio revelar a sua futura morada celeste:
Então não vê a noite
Enquanto que também sol não existe.
Pois é em seu coração luminoso que ele se revela
Em sua própria revelação do divino saber das coisas
Namandu faz um sol.


Ñamandu verdadeiro pai primeiro
Mora no coração do vento originário;
E ali ele repousa
Urukure’ a coruja faz com que existam as trevas
Ela faz com que então se apresente o espaço tenebroso.


Ñamandu verdadeiro pai primeiro
Ainda não fez com que se revele
Em sua próprio revelação
Sua morada celeste.
Ainda não fez com que se revele
Em sua próprio revelação,
A primeira terra: ele mora no coração do vento originário.

O vento originário, onde, no coração mora nosso pai,
de novo se deixa alcançar
cada vez que retorna ao tempo originário,
cada vez que retorna ao tempo originário.
Cumprido o tempo originário, quando a árvore Taji floresce
Então o vento se converte ao tempo novo
Já estão os ventos novos, o tempo novo
O tempo novo das coisas imortais.



O Livro das Árvores
Professores Tikuna
Alto Solimões/ AM

A SAMAUMEIRA QUE ESCURECIA O MUNDO

No princípio, estava tudo escuro, sempre frio e sempre noite.
Uma enorme samaumeira, wotchine, fechava o mundo, e por isso não entrava claridade na terra.
Yo´i e Ipi ficaram preocupados. Tinham que fazer alguma coisa. Pegaram um caroço de araratucupi, tcha, e atiraram na árvore para
ver se existia luz do outro lado. Através de um buraquinho, os
irmãos enxergaram uma preguiça-real que prendia lá no céu os galhos
da samaumeira.
Jogaram muitos e muitos caroços e assim criaram as estrelas.
Mas ainda não havia claridade. Yo´i e Ipi ficaram pensando e decidiram convidar todos os animais da mata para ajudarem a derrubar a árvore. Mas nenhum deles conseguiu, nem o pica-pau. Resolveram, então, oferecer a irmã Aicuna em casamento para quem jogasse formigas-de- fogo nos olhos da preguiça-real.
O quatipuru tentou, mas voltou
no meio do caminho. Finalmente aquele quatipuruzinho bem pequeno, taine, conseguiu subir. Jogou as formigas e a preguiça soltou o céu. A árvore caiu e a luz apareceu. Taine casou-se com Aicüna.

Do tronco da samaumeira caída formou-se o rio Solimões. De seus galhos surgiram outros rios e os igarapés.


O JENIPAPO E A ORIGEM DAS PESSOAS

Tetchi arü Ngu´i era mulher de Yo´i, mas ficou gestante de Ipi. Yo´i não gostou disso e resolveu castigar o irmão. Assim que a criança nasceu, Yo´i mandou Ipi buscar jenipapo, e, para pintar o menino. Quando Ipi subiu na árvore, ela começou acrescer, crescer, quase alcançando o céu. Ipi sofreu muito, mas por fim conseguiu apanhar uma fruta. Desceu da árvore transformado em tucandeira, trazendo o jenipapo na boca. Yo´i mandou Ipi ralar a fruta sem parar. Ele ralou, ralou, ralou,
até que ralou seu próprio corpo.
Tetchi arü Ngu´i pegou o sumo do jenipapo e pintou o filho. Depois jogou a borra

no igarapé Eware. A borra do jenipapo desceu pela água e foi parar num lugar com muito ouro. Depois tornou a subir, já transformada em peixinhos,
numa grande piracema. Quando a piracema passou, Yo´i fez um caniço e foi pescar, usando caroço de tucumã maduro.
Mas os peixes, quando caíam na terra, viravam animais: queixada, anta, veado, caititu e muitos outros. Aí Yo´i usou isca de macaxeira, e com essa isca os peixinhos se transformavam em gente.
Yo 'i aproveitou e pescou muita gente.
Mas seu irmão não estava entre essas pessoas. Yo'i, então, entregou o caniço para Tetchi aru Ngu'i e. ela conseguiu fisgar um peixinho que tinha uma mancha de ouro na testa. Era o Ipi. Ipi saltou em terra, pegou o caniço e pescou os peruanos e outros povos. Esse pessoal foi embora com Ipi para o lado onde o sol se põe. Da gente pescada por Yo´i descendem os Ticuna e também outros povos que rumaram para o lado onde o sol nasce, inclusive os brancos e os negros.
o jenipapo é muito importante na nossa cultura.
A pintura com jenipapo protege a vida das pessoas contra doenças e outros males.
Quando uma criança nasce, seu corpo é pintado.
Quando ela fica um pouco maior, seu corpo é novamente pintado durante a festa.
A menina, quando fica moça, também recebe uma pintura com jenipapo na sua festa de iniciação.
Nessa mesma festa, todos os participantes pintam o rosto com jenipapo: crianças, jovens, adultos e velhos.
Essa pintura do rosto serve para mostrar a nação de cada pessoa.
O jenipapo também dá nome a uma nação.



Wamrêmé Za´ra Nossa Palavra
Mito e História do Povo Xavante

Rómraréhã Rówasu´u
História do tempo da escuridão

Eu vou contar, eu vou contar…
Antigamente o povo A´uwê vivia na escuridão.
Antes da lua. Antes do sol.

Os wapté estavam assando ovos de ma. Comendo. Wapté têm respeito, dizem a verdade entre si.
– Como vocês quebraram os ovos de ema?
– Nós quebramos batendo com os ovos no peito.
– Eu não acredito.
– É verdade! É verdade.

Eles não falaram a verdade. Não falaram.
Ovos de mã assados são muito quentes. É muito quente! Por isso eles inventaram…
Mesmo não acreditando, o wapté bate com o ovo no peito. Então quebra.
Ele grita de dor.

– Asururu… Asururu…
Corre para o rio. De mão fechada. Grita de dor. Está gemendo.
Ele se joga na água para esfriar o peito. E fica rolando, rolando na água escura. Até no fundo da água.
Ele melhora, fica em pé.
Ele se transforma em lua.
A lua é branca. Brilha. Brilha como ovo de ema.
É assim que surgiu a lua.

Ãné!
 



Wasi Wasu´u
Wapté e a estrela

Antigamente não existia Hö.
Os wapté se reuniam no Warã para dormir juntos, sob as estrelas.
Só pela manhã voltavam para casa.
Era noite. Os wapté estavam no Warã, deitados nas esteiras, de barriga para cima.

Dois i’amo  começam a conversar:
- Olha, i’amo ! Olha aquela estrela vermelha! Que bonita ! Como ela brilha!
- Ah! Não, i’amo... Essa é muito feia. Aquela outra é que é bonita.
- Não, i’amo. Aquela estrela mais brilhante é a mais bonita.  Se ela pudesse descer! Se ela gostasse de mim! Se viesse ficar comigo!
A estrela ouve o pedido do wapté e desce para atender ao seu desejo. Como uma moça muito bonita ela se deita ao lado dele na esteira. Os dois ficam namorando, até de manhã...
Quando os outros adolescentes acordam, voltam para casa. O wapté fica dormindo, junto com a moça-estrela. Os dois cobertos pela esteira, sem ninguém perceber o que estava acontecendo.
A mãe está preocupada. O sol já estava alto e o wapté  ainda não tinha voltado para casa. Ela manda o irmão mais novo ir chamá-lo no Warã.
O menino atende ao pedido da mãe e vai.

- Meu irmão, nossa mãe está chamando. É para você ir para casa comer!
- Não, eu não vou. Você vá e traga a comida para mim.
O menino volta para casa e conta para a mãe.
- Você volte lá e diga para ele vir aqui pegar a comida.
O menino vai de novo ao Warã, onde o irmão continua deitado. Explica que a mãe não vai mandar nada para o irmão comer, que está ordenando que ele vá para casa. O wapté responde:
- Não, eu não vou. Você traga a comida aqui para mim.
O menino corre para casa novamente e conta para a mãe. Ela reage, muito irritada:
- Eu não vou mandar! É para ele vir aqui! Por que ele não me obedece? O grupo dele já foi para casa!
O menino está cansado de tanto recado. Desconfiado de que algo estranho estava acontecendo, decide ir até ao Warã,  com cuidado para não ser notado. Ele sai da casa e vai. Se aproxima devagar, bem devagar, andando pelo outro lado do círculo do Warã e olha onde o irmão está deitado. Ele queria descobrir o que estava acontecendo. Ele vê então uma moça! Uma moça muito bonita, com o corpo todo listrado, deitada ao lado do irmão.
Ele fica surpreso e corre para casa. Chega sem fôlego:
- Mãe, tem gente deitada do lado do meu irmão! Uma pessoa listrada!

- É verdade? A mãe pergunta, admirada.
-É verdade, mãe ! É verdade!
- Me leve então, eu quero ver!
Os dois, a mãe e o filho mais novo, vão até o Warã onde está o wapté. Quando chegam, ele já está deitado sozinho na esteira e a mãe pergunta:
- Meu filho, seu irmão me disse que tinha uma pessoa deitada aqui do seu lado. Uma pessoa listrada! É verdade?
- Não, minha mãe, não é verdade. Não tinha ninguém aqui deitado do meu lado.
Antes da mãe e do irmão chegarem, a estrela já havia ido embora. Haviam combinado um lugar onde se encontrariam depois. Tinham um plano...
A mãe fica tranqüila. Acredita na palavra do filho.
O wapté então diz:
- Mãe, fale para o meu irmão trazer a borduna. Eu vou tirar embira .
A mãe dá a ordem para o menino ir em casa buscar a borduna e ele obedece. Então, os dois, o wapté e seu irmão, vão para a mata para tirar embira da árvore de paina .
O wapté começa a testar as árvores para escolher uma que tivesse boa embira. Bate com a borduna, tira um pedaço de entrecasca e diz:

- Não, essa árvore não está boa, não vai dar boa embira. Vamos ver outra... Ah! Esta também não está boa. Vamos procurar outra...
Os dois vão caminhando pelo cerrado, se afastando mais e mais da aldeia. A busca de embira era apenas um disfarce, um jeito de chegar onde estava esperando a estrela.
Assim, vão se aproximando, mais e mais perto até chegar no local combinado.
O wapté fala para o irmão:
- Não se assuste com o que você vai ver! Tenha coragem!
E o menino vê que tem gente lá em cima, no alto da wa’a wede. A moça estava esperando, sentada no alto da palmeira, segurando de um lado do broto da wa’a wede.
O wapté pega a borduna e mostra para o irmão como ele deve bater no tronco da palmeira,  cantando para ela crescer.
- Assim você vai bater com a borduna. Assim! Bata, mas não olhe para cima. Fique com a cabeça abaixada. Assim você vai bater e cantar:
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...
Cresce árvore, cresce árvore, cresce árvore...
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...

O wapté, depois de ensinar o irmão, sobe na palmeira onde a estrela já está esperando, toda enfeitada com sua pintura de listras e colar de dente de capivara.
O menino faz exatamente como o irmão ensinou. Bate com a borduna e canta:
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...

Bate, bate muito e canta:
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...

- Assim? Já está alta?
- Não, ainda não. Ainda está baixinha. Você tem que continuar batendo... Bate, bate mais!
E o menino bate no tronco da palmeira, cantando:
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...
Cresce árvore, cresce árvore...
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...

- E agora? Já cresceu?
- Não, bata mais! Agora é a última vez!

Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...
Aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana, aiwede pana...

O menino já bateu. Bateu muito!
- Pode parar agora! - gritou o wapté lá de cima.
A wa’a wede havia crescido tanto que já não se via mais suas folhas. Tinham alcançado o céu, penetrado o algodão das nuvens.
Ele fica desesperado com o que vê. Começa a chorar, a gritar...
- Desce, meu irmão ! Ai, ai, ai, ai... Desce meu irmão! Ai, ai, ai, desce meu irmão!
Larga a borduna no chão. De tão assustado, nem consegue ficar em pé. Sai tropeçando, cambaleando... Volta para casa, chorando muito.
Quando chega, desesperado, a mãe pergunta:
- Por que você está sozinho? Você não foi acompanhar o seu irmão? O que aconteceu?
E o menino responde, soluçando:
- Meu irmão subiu ! Meu irmão subiu!
- É verdade?
- Sim! Eu não estou mentindo! Estou falando a verdade! Meu irmão subiu!

Os dois, mãe e filho, vão correndo até onde o wapté havia subido. Quando chegam, vêem a palmeira. Retinha. Alta, muito alta. Naquele tempo o céu era baixo e a wa’a wede tocava o céu.
A mãe se sentou ao lado da palmeira e chorou.
Chorou, chorou, chorou.
Triste, a mãe fica esperando... Tinha esperança que o filho voltasse um dia.
Quando o wapté chegou no céu, seu quarto já estava preparado dentro da casa do sogro. Lá ele construiu a sua família.

O tempo passou, passou, passou...
Ele tinha muita saudade da sua mãe, do seu pai... Avisou o sogro que ia voltar para visitar a família. Trouxe uma cabaça bem grande cortada ao meio. Dentro da cabaça muito mo’õni e ubdi . Os sogros haviam preparado para firmar o compromisso dos filhos. Esse foi o primeiro ato firmando responsabilidades entre os sogros.
O rapaz conta para os pais como era sua vida no céu e vai embora.
Vive para sempre com sua esposa estrela, no céu.

Assim foi a primeira história de amor.
Essa é a história do wapté que subiu para o céu e nunca mais voltou.



Entre dois mundos
Angela Pappiani
Ed. Nova Alexandria

Uma noite fria



Sereru abriu os olhos. A casa estava escura na noite fria de julho. Apenas algumas sombras se projetavam nas paredes de palha quando o foguinho, aceso no centro da casa, se movia e estalava. Ele acordou com o som das vozes do pai e da mãe conversando baixinho.

Na cama grande, feita com pranchas de madeira suspensas, com esteiras recobrindo as folhas macias da palmeira de buriti[i], estavam os pais e os irmãos menores, todos juntinhos e encolhidos, tentando se aquecer melhor.

Do outro lado da casa circular, os avós maternos dormiam e roncavam, como sempre. A tia, irmã de sua mãe, dividia outra cama com o esposo e os filhos.

Ele ficou atento à conversa. Estava curioso. O som do canto dos wapté[ii] chegava também a seus ouvidos. Esse canto embalava o sono todas as noites. Vinha do pátio da aldeia, onde os adolescentes, que estavam em plena cerimônia de furação de orelhas, cumpriam sua missão de cantar de madrugada para alegrar o povo. Era tão bonito o canto!!! Seu irmão mais velho estava lá, junto com outros vinte e seis meninos, completando o ciclo de formação.

E esse era o assunto dos pais agora. Eles falavam sobre a cerimônia que aconteceria no dia seguinte. Sereru ouviu o que mais lhe interessava – o nome da noiva escolhida para o irmão mais velho.

- Já conversei com meu iamon[iii]. Ele está de acordo. Também acha que sua filha do meio será uma boa esposa para nosso filho. Ela é muito curiosa e alegre, vai ajudá-lo a descobrir o mundo...

- Meu marido, eu concordo com a escolha. Desde que ela era muito pequena eu observo seu jeito... Ela é muito caprichosa nas tarefas do dia a dia, não é preguiçosa. Os dois farão um belo par.

Os pais continuaram conversando, mas agora Sereru já podia dormir sossegado e esperar a agitação do dia que logo ia raiar.

No aconchego da casa, ele adormeceu novamente e sonhou um sonho estranho... Alguns velhos, que ele não reconhecia, estavam no pátio central da aldeia, sentados em suas esteiras, em torno de um grupo de meninos. Sereru estava no centro do círculo, com alguns de seus primos.

Os velhos pareciam assustados e falavam coisas que ele não compreendia. Sons terríveis que ele nunca ouvira antes, barulhos ensurdecedores se aproximavam, vindos de todos os lados...

De repente, a terra começou a ruir em torno daquele círculo, as casas da aldeia desapareciam, afundando num buraco escuro. Eles permaneceram ali, juntos, os meninos e os velhos, como que suspensos no ar. E uma luz forte e azulada brilhou no céu.



[i] Buriti – espécie de palmeira típica do cerrado. Nasce nos lugares mais úmidos, à beira de córregos e lagos. É muito importante para o povo Xavante, que aproveita suas folhas e brotos para fazer cestos, esteiras e a cobertura das casas; os talos, para preparar carvão para as pinturas corporais e os frutos, que são muito apreciados por seu sabor. O tronco da palmeira também é preparado para a corrida de tora de buriti.


[ii] Wapté – nome dado aos meninos que ficam reclusos por um período de cerca de cinco anos de formação até a cerimônia de furação de orelhas. Nesse período, o contato com a família é esporádico e eles convivem mais com os padrinhos e os velhos da aldeia. Equivalente a adolescente.

[iii] Iamom – cada menino ou menina na aldeia tem um companheiro da mesma idade e do clã oposto que será sua outra metade para toda a vida. Os iamon estão sempre juntos, nas brincadeiras e nas atividades cotidianas e geralmente decidem os casamentos entre seus filhos.